Capítulo VIII



       As nuvens que pairavam sobre mim tornaram-se mais negras no dia de levar a cremar o Hugo. Estávamos lá todos para a sua última presença na terra. Havíamo-nos reunido em casa do João e bebemos cerveja e fumámos e cheirámos, a fim de, quando o Hugo fosse a cremar não desatássemos a chorar que nem doidos. Afinal, éramos homens, caramba! Mas saiu-nos o tiro pela culatra, porquanto ao vermos as gentes a chorar também o desatámos e assim passámos uma vergonha dos diabos. Vergonha que era unicamente nossa, porque, realmente, quem não chora por um amigo? As nuvens pareciam de fumo de petróleo queimado.
Quando a Teresinha nos telefonara desatámos a rir, consequência do muito que havíamos consumido. E foi só quando o Espadas deu um berro “caralho, mas estais malucos, ou quê?”, é que nós viemos a nós e nesse momento pareceu cair-nos o mundo em cima. Quando tomámos consciência, e imaginai o quanto custa ficar consciente quando se tem metido não sei quantas gramas, fumado não sei quantas ganzas, bebidas não sei quantas cervejas, acorremos de imediato à casa da Teresinha. Quando lá chegámos, já a polícia e o INEM lá estavam. Ao vermos a polícia, demos meia-volta, o Maluco talvez tenha dado duas voltas e meia, e fomos para a discoteca que um dos Santos dera indicações de querer ir. Como é possível irmos para a discoteca quando um amigo nosso acaba de se suicidar involuntariamente? Pois, nós não sabemos. O que sabemos é que fomos e só nos lembrámos do Hugo no dia seguinte. Nem todos, acaso.
À entrada da discoteca encontrámos o Mariocas, que poucos dias antes nos tinha sido apresentado pelo Espadas. Com ele estavam a Maria Lourdes, o Paulo Quintão e o Pedro Osório, pessoas que por irrelevantes não se dirá mais nada a seu respeito. O Mariocas tratou de nos pôr dentro da discoteca, mercê dos seus conhecimentos. Igualmente, porque o que é de mais nunca é exagero, tratou de nos abastecer com o fruto proibido. De resto, seria desde então o nosso fruteiro predileto. Era um tipo bestial, é um tipo bestial. Dez minutos depois de entrarmos estávamos a sair com fito na casa do Mariocas. O tipo era um bom cozinheiro e dissera-nos que na noite que precedeu essa manhã fizera um arroz de cabidela e que ainda sobrara algum. Porque esfomeados, fomos para casa dele.
Pode um arroz desencadear uma série de sentimentos? Pode, pois. Estava eu a comê-lo, por sinal muito bem cozinhado, quando sou atingido por uma tristeza. Primeiro a partida da Bulé, agora a morte do Hugo. E neste pensar em coisas tristes sobreveio a Aninha. A minha vida não era apenas uma vida sem rumo, sem futuro e sem esperança, era uma tragédia com todos os condimentos de uma tragédia moderna dos autores pirosos. E eu que abominava esses autores era agora como que uma personagem criada por eles. Que mais mal poderia acontecer? Que esperar de todos estes sucessivos acontecimentos? Como lidar com eles? Se com a perda da Aninha resultou a minha vida na boémia, o que poderia resultar agora com a perda de um amigo? De dois, se contar a Bulé. Como lidar com a morte de alguém de quem gostamos? Nada me ocorria. Mirava os outros e eles pareciam não estar afetados pelo que estava a acontecer. Comiam o delicioso arroz alarvemente, falavam e discutiam, fumavam e bebiam, riam e cheiravam; e eu ali a olhar e a pensar em tudo aquilo, com um vazio que me consumia por dentro como um cancro que vai ganhando terreno até ao dia final.
Acabaríamos por sair já tarde da casa do Mariocas.
No dia da despedida do Hugo, creio que nenhum de nós se terá lembrado de que no dia em que ele se suicidara estivéramos a divertir-nos estupidamente.

A Teresinha, enjeitada por mim, coitada e pobre rapariga, havia decidido que nessa noite comeria alguém. E como a fome se juntou à vontade de comer, e nunca o provérbio se aplicou tão adequadamente, o eleito foi o Hugo. Pouco tempo depois de ter rejeitado a Teresinha, esta foi ter com o Hugo e perguntou-lhe se queria ir com ela a casa porque tinha lá umas coisas de que o pessoal iria gostar. As coisas eram ácidos. Mas o escopo dela era outro. Ela tinha ouvido durante a noite o que o Hugo andara a dizer, pois ele era um cromo do caralho e disse a toda a gente que a queria comer. Assim não pensou duas vezes na hora de escolher. E o Hugo não rejeitou, como bem calculais. Quando chegados a casa dela, o Hugo, fazendo-se despercebido, pois já sabia o que ela queria, perguntou-lhe que coisas eram, ao que ela respondeu que ácidos. Ora, o Hugo era atreito a ácidos. Quando ela lhos mencionou a primeira coisa em que pensou foi em metê-los. E foi a sua morte. Tudo isto nos contara a Teresinha um mês mais tarde. Ao que parece, a Teresa fora buscar os ácidos depois de muita insistência do Hugo. Ele meteu um, enquanto ela fazia um charuto. Ora, neste ínterim, o Hugo foi para a varanda e quando a Teresa foi lá perguntar se ele queria dar uns bafos é que se apercebeu que ele lá não estava. Chamou por ele. Foi aos quartos ver se ele estava lá. Sentou-se a fumar mais um pouco, talvez ele tivesse ido embora. E quando veio matá-lo, o charuto, à varanda é que se apercebeu de um corpo estatelado na rua. Eis o que aconteceu. O Hugo meteu o ácido e a tripar “amandou-se” da varanda abaixo. Típico dele! Mas não foi nada disto. Para quem esteve atento, sabe que o Hugo não se amandou da varanda da Teresinha, mas na do vizinho. Como foi ele amandar-se da varanda do vizinho? Pois, isso é o que contarei de seguida.