Capítulo II
É
comum pensar-se que as pessoas que se deixam levar pelo mundo da droga têm
problemas familiares e bullshits. As restantes bullshits referem-se às outras
ideias tais como terem sido influenciados por amigos, ou por namoradas
rebeldes, e blablablá. Não é o meu caso, porém. A minha família é muito
saudável. O meu pai trabalha para o meu tio, no negócio que ele abriu desde que
regressara de dar a volta ao mundo. A minha mãe tem um pequeno negócio: uma
mercearia, debaixo do nosso prédio. Não rende muito, mas é o bastante para
fazer face às despesas. Ambos se dão bem. Os meus irmãos também são bastante
saudáveis. O mais velho alistou-se no exército e agora é um distinto militar. A
minha irmã, que é a do meio, eu sou o mais novo, portanto, casou-se há um ano e
vive com o marido no estrangeiro. O marido tinha família no Luxemburgo, que, como
sabeis, tem muitos portugueses radicados, e arranjou emprego para ambos nesse
minúsculo país. E eu, sendo um jovem e saudável rapaz, meti-me nas drogas.
Coisa não rara sucedendo nas famílias normais.
Dissera-me
a minha mãe que quando nasci não chorei. Os médicos, prática habitual ao que
parece, deram-me umas palmadas no cu e logo comecei a viver. Na verdade, não
foram os médicos, mas a enfermeira que assistiu no parto. Não sei qual a
relação entre não ter chorado e a minha propensão para as drogas e a vida
boémia, mas estou em crer que não era minha intenção vir ao mundo. Só assim
explico o não ter chorado. Algo me diz que não queria ser ninguém. Mas o raio
da enfermeira lá me tinha de dar as palmadas para me acordar do sono em que
estava mergulhado havia nove meses. Não se pode fazer nada quando somos lançados
ao mundo. E eu bem que tive que viver. Crescer. Fazer-me primeiro bebé, depois
menino, depois adolescente e chegarei a homem um dia, apesar de já ter idade
para sê-lo.
Como
tinha irmãos mais velhos, basicamente andei sempre sob alçada deles, fosse em
casa, fosse na escola, até ao dia em que ambos saíram e me deixaram à solta.
Foi a minha perdição! Não ter quem me disciplinasse, apesar da Aninha, foi brutalmente
ultrajante para a minha vida posterior. Mas não os culpo. Eles seguiram as suas
vidas, e eu tive de seguir a minha. Foi o começo do descalabro e da minha vida
boémia.
Interrompi
a minha história de amor com Cristina para vos contar donde vim, mas agora que
penso nisto, o sítio donde vim tem pouco para contar. Resume-se a: nasci,
cuidaram de mim os meus avós até à ida para a escola primária, depois fui para
o ciclo, onde já a minha irmã andava, e cheguei ao liceu, onde coincidi com os
meus dois irmãos (a minha irmã e irmão). No meio de tudo isto, cresci como um
rapaz normal, cuja família fizera de tudo para lhe dar uma boa educação e para
que lhe não faltasse nada. Fiz amigos, brinquei, saltei, joguei, andei de
bicicleta, caí e parti um braço, chorei e ri imenso, enfim fiz tudo tal qual
uma criança normal. O mais que houvera fora por acréscimo.
Portanto,
deixai-me voltar à história da Cristina Ana, já sabida o que fora a minha
história de infância e sabido já como conhecera a Cristininha.
Desde
o momento em que entrara de mãos dadas com a Aninha naquele dia na escola, a
minha vida mudou. Deixara de ser o totó que se enfiava na biblioteca e que
ninguém notava. Sobretudo por parte das miúdas. Mas os homens, nestas coisas,
não são muito diferentes das mulheres, e também eles me passaram a ver com
outros olhos, sendo no entanto os mesmos (exceto aquele que por infortúnio
cegara). Da parte de alguns tivera convites para participar nos eventos a que
iam. Da parte das mulheres, sendo mais comedidas, até porque temiam a Cristina,
havia aqui e ali uns olhares maliciosos e umas insinuações ousadas. Mas nunca
passaram disso, até ao dia em que a Cristininha me deixara por ter fumado um
charro (na verdade apenas foram uns bafos rudimentares); como antes já vos
dissera. A partir daí … bem, mas lá chegaremos. Portanto, eu era visto a partir
de então como aquele que namorava a Cristininha, a beldade da escola que fazia
a delícia de muitos e a inveja de outras. Se até aquele momento não era
ninguém, a partir dele eu era o namorado da Cristininha. Ou seja, continuava a
não ser ninguém. O que muito me aprazia. Mas namorar com a Cristina não era
fácil. Controlava todos os passos. Não só os meus, mas igualmente os das suas
amigas. Embirrenta que eu sei lá! Tínhamos de fazer tudo que ela queria. Como
daquela vez em que eu, estando um pouco cansado de estudar, lhe dissera não a
um convite para irmos ao cinema, pois as amigas também iam. E porque eu
dissesse, algumas das amigas não se sabe bem porquê resolveram dizer que afinal
o melhor era não irem porque também estavam cansadas …. Foi um ai Jesus, a
Aninha desatou e mandar vir com todos nós, comigo e com as amigas que agora
estavam cansadas, e porque isto e aquilo, porque elas queriam era estar comigo
e levar-me para casa delas, porque já não gostavam dela, porque queriam
livrar-se dela, porque e porque e porque. Era sempre ela. Não havia eu, nem
nós, elas, mas ela e ela. Era difícil lidar com a Aninha. Ficou uma semana
amuada connosco. E não obstante andar constantemente com ela, praticamente
deixara de ser como era para viver como ela queria, não lhe bastava isso. Queria
mais. Sempre mais. E mais. De mim e das amigas. Mas dizia-vos, a minha vida
mudou de tal maneira que nem os meus pais me reconheciam. Saía cedo de casa
para ir buscar a Aninha, chegava tarde a casa porque havia levado a Aninha.
Estudava com a Aninha em casa dela. Às vezes almoçava e jantava. A minha mãe
perguntava-me, não raro e a sorrir, se já me tinha casado às escondidas. Sempre
fora uma brincalhona. Ainda o é. Enfim, se antes eu não era ninguém,
anulando-me, agora anulava-me de igual forma em nome da Aninha querida e
maravilhosa.
Com
efeito, a Aninha era uma maravilha. Uma querida. Uma delícia de moça. Se vos
falo dela é para compreenderdes a importância que ela teve na minha vida.
Aliás, o que sou hoje é resultado desse nosso encontro. Melhor, desse
atrevimento dela. Caso contrário nunca a teria conhecido. Enquanto namorei com
ela toda a minha vida era uma linha reta. Não havia curvas, nem subidas, nem
descidas. Nada. Irrepreensível. Não é que precisasse dela para isso, porquanto
eu já era um rapaz sossegado e nos eixos. Com ela, todavia, a vida era
severamente disciplina. Por algum motivo ela me despachara à mínima falha
minha. Onde ela se me mostrava mais querida (ainda) era na cama. Ali não havia
sexo. Mas amor. Entregava-se-me de uma maneira que eu sei lá (nem poderia
saber, pois só a tivera a ela até então.) A nossa primeira vez fora em casa
dela. E foi a coisa mais fofa e querida que alguma vez experimentara. Não por o
sexo ser bom, no geral, e ter sido bom com ela, em particular. Nada disso. Mas
pelos preparativos que ela realizou para que tudo corresse bestialmente. Foi no
dia em que os pais dela foram viajar. O irmão, tanto quando soube depois, tinha
ido passar o fim-de-semana a casa de uns amigos. Ela preparou-nos um jantar
fabuloso. Sem carnes, visto que pouco tempo antes tornara-se vegan. Se me
perguntardes o que era, não vos saberei dizer. Apenas que era bom. E eu comi.
Mais não fosse porque o que me esperava compensava o sacrifício. Ah, e se não
compensou! Depois do jantar vimos um filme, acompanhados de uma garrafa de
vinho de não sei quantos anos que os pais dela tinham na cave. Não recordo o
ano. Só que era bom. Eu não era muito dado a beber, e ela também não. Mas ambos
achámos que seria adequado para nos desinibir. E de facto resultou, visto que a
nossa desinibição foi total. A restante noite fica para quem a viveu, pois
claro. O resto já vós sabeis.
E
assim correu a minha linda vida com a minha linda Cristininha. Ah, maravilha!
Depois
tudo descambou quando, passados dois anos, o irmão Mário me convidara. Ela
apanhara-me a fumar e terminou ali tudo. Não preciso contar essa noite.
Em
seguida, contar-vos-ei o que passou a ser a minha vida sem a minha rica, doce e
maravilhosa Cristininha. Ah, e não nos esqueçamos do caracol sentado ao sol.
edit
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