Capítulo III
O
que vou contar de seguida precisaria de uma bolinha vermelha. Irei porém evitar
todas as obscenidades. Ou sempre que possível.
Poderia
começar este capítulo (da minha vida) como alguns romancistas da praça que, à falta
de talento, iniciam os seus romances sempre da mesma maneira. Por exemplo:
estava um dia de sol, brilhante, que entrava por a casa adentro. Ou ainda:
naquele dia, João Maluco, sentado em seu sofá, recebera-nos em casa. É já um
hábito dos romancistas de algibeira referirem de início o estado tempo (como se
alguém quisesse saber disso para alguma coisa); a referência ao estado tempo é
uma constante. Ou então começam por descrever o espaço ou caracterizar a
personagem (para eles o personagem). Como por exemplo: a sala era enorme, quase
majestática, e as pessoas bebiam os seus uísques enquanto conversavam. Nas
paredes, os quadros conferiam à sala a envolvência cultural que então se vivia.
E essas tretas todas. Ou então voltam-se para a personagem (ou personagens) e
escrevem: João era alto, magro, usava uma barba de três dias e tossia de vez em
quando, fruto do seu problema asmático (a referência à asma era frequente em
autores do século XIX). Mas eu não quero saber disso, pelo menos por agora e
evitarei sempre que necessário. Se houver ocasião de descrever o estado do
tempo que fazia à época em que se passa esta história (para eles estória),
fá-lo-ei porque a referência era necessária, porque o estado do tempo de alguma
forma implicará a ação. Quem quer saber do estado do tempo, quando nem os
meteorologistas o compreendem? Assim, começo por referir, e não me demorarei
mais em questiúnculas romanescas, que no dia em que conheci o João Maluco
estava um sol radioso, daqueles que lembram o verão de agosto, e adentrava em
sua sala e queimava o sofá onde ele estava sentado, fumando o seu charro de
erva marijuana. Fui parar a casa do João Maluco por intermédio do Marco
Embuste. Este era um rapaz alto, magro, com barba de três dias, olhos com
olheiras profundas, de quem parecia não dormir há dias, se não semanas, com uma
capacidade para memorizar palavras do dicionário como mais ninguém. Veem como é
fácil cair neste clichê? Não se passou nada disto, exceto o facto de realmente
conhecer João Maluco por intermédio do Marco Embuste. Este era um rapaz
normalíssimo em todos aspetos. O sol não brilhava nem adentrava na casa do João
Maluco. Porém o João Maluco fumava a sua erva. Não me alembro do tempo. Talvez
chovesse, até. Ou estivesse nevoeiro. Ou até fosse de noite. Juro-vos que não
me alembro de nada. Mas não importa o que não tem importância nenhuma.
Conheci
o Marco através dos irmãos Santos, o Ricardo e o Duarte. E conheci estes na
noite em que a Aninha me despachara como quem avia receitas médicas. Essa mesma
em que pela primeira vez dei uns bafos num charro, num baseado, como dizem os
brasileiros. Sabíeis que um dos significados de charro é, segundo o dicionário
Houaiss, “a que falta de refinamento: grosseiro, rústico, tosco”? O Aurélio
apenas regista estas últimas. Empregada com este sentido a palavra tem uma
outra ressonância. Vede bem: ele era um indivíduo charro. O carro tinha um
aspeto charro. Não achais lindo? Eu acho. Os irmãos Santos viram-me apartado da
festa e então abeiraram-se de mim e perguntaram-me:
–
Não és o cunhado – nesta altura deram por assumido que me casaria com a Aninha,
mal eles adivinhariam que seriam os culpados da nossa separação. Ou porventura
terei sido eu, uma vez que eu é que aceitei dar os bafos – do Mário, o que
namora a Cristina Ana?
–
Sou sim. – respondi solícito. Era bom poder falar com alguém, visto que estava
há já quase uma hora sem o fazer, unicamente vendo as pessoas andarem de um
lado para o outro.
–
Ela não está cá hoje?
–
Não. Foi ficar à casa da Maria Joana. Não gosta destas festas.
–
E tu gostas?
–
Na verdade é a primeira vez que venho a uma.
–
Então anda daí divertir-te. – E claro, lá fui. Primeiro começaram por me
dar de beber, depois de bebido e já com a cabeça à banda, ofereceram-me um
charro. A Aninha decidira-se a passar por lá, com a Maria Joana, no exato
momento em que estou a dar dois bafos. Aninha, Aninha, era um cigarro, era um
cigarro, não sejas assim, vá lá, era um cigarro. Mas ela já ia a sair em fúria
apressada. Só lhe vi os lindos cabelos já ela estava a cruzar o muro que
rodeava a casa. Havia-vos dito que não contaria nada sobre esta festa. E assim
será. Referi este aspeto unicamente para saberdes como conheci os irmãos
Santos.
Após
esse dia, e porque me sentia tão só sem a minha Aninha querida e fofa e
maravilhosa, meu mel que me sarava de todos os males de que por vezes sofria,
vede bem a piroseira a que se pode chegar e que se pode dizer (o Houaiss e
Aurélio não registam piroseira), passei a sair com os Santos. Como bem
calculais, não foi preciso muito para começar a fumar uns charros baseados. De
início apenas dava uns bafos. Aquela coisa de se estar a fumar e passar o charro
para dardes umas passas. Sempre no fim, como é apanágio de quem é debutante. E
daí a fumar mais do que umas passas foi um instante. Um tiro. Passei a saber
enrolar os charros; e daí a comprar o meu chamon e fumá-lo sozinho foram dois
passos curtos. Se me perguntardes porque é que passei a fumar com frequência,
talvez a minha resposta esteja relacionada com a perda que foi da Aninha. Mas
confesso-vos que não sei se aí está a resposta acertada. É que eu passei a
gostar daquela sensação de estupidez que se tem quando se fuma. Passei então a
fumar com frequência, uma vez sozinho, outras com os irmãos Santos. Por agora
era apenas nestas circunstâncias e com estas pessoas. Não faltou muito,
todavia, para que me juntasse a outros na partilha das experiências com drogas.
Foi assim, por exemplo, que sucedeu quando os irmãos Santos me apresentaram o
Marco Embuste. Este era um rapaz alto, magro, com barba de três dias, olhos com
olheiras profundas, de quem parecia não dormir há dias, se não semanas, com uma
capacidade para memorizar palavras do dicionário como mais ninguém. Ou talvez
nada disto é verdade. O Marco era um rapaz afável. Nem alto, nem baixo, nem
magro, nem gordo, nem com olheiras profundas, nem dormia mal, nem com
capacidade de memorizar o dicionário, nem com olhos azuis e cabelos pretos, nem
usava óculos, tão-pouco via mal, nem fumava sequer, apenas uns baseados
charros, nem usava sapatilhas tamanho 45, nem era paneleiro, nem se dava a ares
de sabichão, nem de queque de betinho, nem o caralho. O Marco era o Marco. O
Marco Embuste. Conheci-o num dia de chuva intensa, daquelas que molham um gajo
todo, embora não estivesse a chover, e apresentaram-mo no dia em que o sol
sorria lá do alto e fazia calor imenso que não dava sequer para estar à sombra,
e então ele dissera-me:
–
Não eras tu que namoravas a Cristina Ana? –
E eu respondera que sim, que era, mas por que raio tendes que me fazer
sempre essa pergunta. Consentiu que não fora muito inteligente em perguntar, e
toma lá, fuma deste. E assim fumámos um, outro, e mais outro, e talvez outros
tantos cuja soma era capaz de pôr uma máquina de fazer contas toda marada. Era
um tipo bestial, de facto. Um tipo sem olheiras. E isso era suficientemente
atrativo para quem pretendia passar despercebido. Enfim, resumindo, conheci o
Marco Embuste por meio dos irmãos Santos, e conheci o João Maluco por
intermédio do Marco Embuste.
O
João era um ganda maluco. Daí o nome. A pancada dele era tão forte como a do
Mike Tyson. No dia em que conheci o João Maluco, naquele dia de sol radiante e
calor intenso que não dava sequer para estar nem na piscina ou no mar ou no
rio, ou no caralho que fosse onde pudéssemos estar, nesse dia mesmo em que o
sol pareceu querer queimar toda a terra, em que eu pensei que seria o fim do
mundo (em cuecas, ainda por cima, tal o calor), a previsão tornada realidade,
enfim, nesse dia calorento de fazer queimar uma formiga em dois minutos ao sol,
dizia-vos, nesse dia em que me não alembro tampouco de como estava o tempo,
nesse dia em que conheci o João Maluco ele perguntara-me:
–
Eh, mano, tu não és aquele que namorava a Cristina Ana? – O caralho da pergunta
já começava a chatear tanto quanto estou agora ao recordar tudo isto. E eu sem
saber quem era o João e as suas raízes, respondi:
–
Já me começa a enervar essa conversa da Cristina Ana, caralho. Toda a gente me
pergunta isso, foda-se. Qualquer dia passo-me dos cornos. Já não estou com ela
há dois meses e toda a gente a perguntar-me por ela, foda-se. – E mal termino
estas palavras me apercebo que o João por algum motivo era Maluco, calo-me e
refreio os nervos à espera do soco. Não veio. Começou a rir-se e a dizer para
me acalmar, e pega lá, fuma deste, manda foder a gaja, não faltam é gajas. E
eu, com o suor já sobre a testa, aceito o charro e dou duas passas, tudo parece
voltar à normalidade. Porém, a partir dali nunca mais houve normalidade na
minha vida. Já estava dentro.
Se
calhar, o melhor é fazer uma pausa e voltar dentro de momentos, depois de me
passarem os nervos. Não fujais, volto num instante e contar-vos-ei mais alguns
episódios.
edit
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