Capítulo VI



      Quando se adormece a pensar no passado sucede amiúde passar a nossa vez. Isto aplica-se tanto à vida quanto ao que me sucedeu aqui mesmo nas finanças: passou a minha vez e agora tenho de tirar nova senha, raios partam! Mas não há stresse, porque tenho o tempo por minha conta. Desperto que estou do passado, noto que só resto eu dos que ainda há bocado cá estavam. É provável que se tenham rido de mim. Ou que nem sequer tenham reparado. Ou pior dos piores, que tenham chamado a polícia porque com medo de quem seja eu e do que aqui estou a fazer há bastante tempo. A mim tanto se me dá.
Depois do sol da Bulé ter brilhado à minha volta e dos meus amigos, mergulhei novamente no mar das drogas e dos ódios e quando vinha à superfície era unstoppable. Com efeito, eu gostava das drogas, na verdade, e verdade seja dita, e por norma digo-a sempre, não me arrependo. Creio que a experiência com as drogas e álcool, à parte os malefícios, enrijece-nos a personalidade. Se eu fosse um escritor português e de algibeira diria ser em vez de personalidade. Eles amam escrever ser e coisas com profundidade. O escritor português quer ser poeta sendo prosador. E quer ser filósofo sendo escritor. Mas resulta porém que nem é uma coisa nem outra. No que toca à primeira pretensão é que estão impregnados de Pessoa e querem-no ser. No que diz respeito à segunda estão influenciados pelos filósofos charlatães pós-modernos e os Heideggeres desta vida, e outros que tais. Já me estou a alongar. Voltando. Dizia que a experiência com drogas e álcool enrijece-nos a personalidade. Afirmo-o porque é o que se passou comigo e com a maior parte dos que conheci. Diria que essa experiência está para nós como a tropa estaria para os jovens de há uns anos. Sendo a comparação tão estúpida como o consumo de droga, também não deixa de o ser a ideia segundo a qual a tropa faz-nos homens. E isso atesta-mo o meu irmão sempre que dela me fala. Mas andemos que se faz tarde, e mau grado ter o tempo comigo não o tendes vós.
A partida da Bulé, acaso, agora que penso nisso, teve um efeito em mim análogo ao do término da Aninha. Daí que, o resultado fosse semelhante. Assim, a corja e eu voltámos ao que éramos antes do sol da Bulé ter iluminado as nossas vidas com a sua personalidade sui generis.
No dia em que se comemorava o dia da raça, como disse em tempos um nosso douto e sábio presidente, a corja reuniu-se em casa do João Maluco para celebrar a raça. Qualquer dia era dia para celebrações, na verdade. Mas nesse iríamos não só comemorar a raça, segundo esse douto e sábio presidente, mas igualmente a libertação. Recordo que, o calor que se fazia sentir nesse dia e o fresco da noite eram ambos resultado da ressaca anterior; de modo que, não vos posso dizer com exatidão se estava calor e fresco.
Reunidos que estávamos todos em casa do João, não tardou, como sempre não tarda, que nos abastecêssemos de droga da boa e da melhor e mais boa qualidade que alguma vez houvera em cima da terra e nos planetas todos do universo e para lá dele e o caralho que possa existir mais para lá de tudo o mais e o caralho. Este era o espírito, caralho. Só de falar nisto, caralho, sinto pele de galinha e sinto encarná-lo. O João fez uma jantarada para a malta que era daquelas que dão água na boca só de ver. Era um arroz que, caralho, meu deus, não valia chavo. Mas como estávamos com fome dos diabos comemo-lo como se fosse sapateira, marisco, e essas coisas todas que eu próprio não gosto nem de ver.
Como deveis estar a pensar, e bem estais, estou para aqui a enrolar a história porque me perdi nela e já nem sei o que ia dizer-vos, nem o que é ou não pertinente. É como se tivesse agora mesmo tomado um grande ácido e estivesse a tripar que nem o o Jonhy Depp e o Benício del Toro. E se calhar….
É assim, vou explicar-vos. Quando aqui entrei vinha todo acelerado de cocaína e café e álcool e essa merda toda. Depois como tinha de esperar bastante tempo pela minha vez, achei por bem contar-vos porque estou aqui e por isso iniciei por contar a minha história. Contei-vos um pouco anacronicamente, dado o estado em que estava. Depois ali a meio comecei a atinar e daí algumas reflexões e explicações. Porém, estava ali no meio dessas explicações e sem que ninguém topasse, tomei um ácido. Resultou então que estou para aqui a engonhar porque na minha cabeça, ou a minha cabeça, está uma roda viva. De sorte que, antes de voltar à história que me trouxe aqui, deixai-me voltar ao tema dos escritores de algibeira. Aguardai, tende paciência, pois lá voltarei não tarda. Agora que estou a tripar como o Depp e o del Toro, dai-me licença de usufruir da tripação. Não tem nada que ver com tripa.
A Bulé partilhara comigo antes de partir duas autoras portuguesas de quem se diz serem grandes escritoras. Pelo que pesquisei na altura, ambas receberam o prémio APE, essa associação que entrega prémios por encomenda. A mesma que entregou a essoutro grande e esplêndido e excelente e enorme e o caralho que o foda de seu nome Gonçalo M. Tavares. Os três têm em comum o prémio mas também o não escrever um caralho. Sendo arguta, a Bulé tirava-lhes a pinta toda. Analisava frase a frase de modo a trazer à tona o ridículo da prosa. Por exemplo, no que respeita à primeira, que se chama Alexandra Lucas Coelho, uma digna sucessora da Margarida Rebelo Pinto, e uma pedante do tamanho do ego do José Mourinho, escreve coisas tais como:
“Eu sei que se pode ser feliz como os gatos por causa do sol ou apesar da chuva. E pode não se ser feliz como os gatos faça chuva ou faça sol.” (Frases deste gabarito encontram-se bastante no Goodreads. Ide lá se pretendeis rir-vos um pouco.) Escrito em A Noite Roda, esse livro que o crítico José Mário Silva classificou em 8, 5 de 10. De facto, se eu estou a tripar de ácido, o José Mário Silva (o tipo que tem o blogue chamado Bibliotecário de Babel) deveria estar a tripar de cogumelos alucinogénicos. Aliás, este tipo de críticos é daqueles que fazem o favor aos amigos e às editoras. O mesmo fê-lo para uma fulana que a Bulé me mostrou. Chama-se essa fulana Ana Margarida de Carvalho. Pelo que sei, é filha do Mário de Carvalho, e tal como o pai, escreve umas coisas que dizem ser literatura. Desta não me recordo de nenhuma frase de cor, logo não vo-la posso citar. Mas ide ver, ide, caralho, e vede como se escreve tão mal em Portugal. O que espanta nestas coisas das comadres literárias é que a maior parte é ligado ao jornalismo, são todos de Lisboa, têm todos alguns conhecimentos do meio, e enfim são todos, sem exceção, indignos de se chamarem escritores. A banalidade da literatura é coisa praticada sobejamente em Portugal.
A Bulé era um espanto de moça!
Retomando o fio à meada, contar-vos-ei de ora em diante e sem mais delongas todas as peripécias que me levaram até aqui.


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