Capítulo V
Por
esta altura transformei-me completamente. Já não pensava na Aninha, nem em
mulheres, nem em amores, nem em nada que me tirasse do sossego. Também por esta
altura descobri enfaticamente os poderes do álcool. Achava deveras divertido
embebedar-me, mas sem cair, e andar na rua no meio das pessoas, observando-as,
apreendendo as suas subtilezas.
Antes
da transformação, porém, escrevi uma carta a Aninha declarando morto o meu amor
e anunciando-lhe que de ora em diante nem uma lágrima verteria por ela, nem que
ela morresse. Era uma carta-catarse escrita em modos que antigos, antevendo um
certo gozo que me daria expurgá-la da minha vida sentimental e física.
Ei-la!
Cristina Ana,
a
decisão que vós tomastes de me fazerdes e tornardes órfão do amor foi para mim,
como deveis calcular, um rude golpe nos meus projetos de vida, e mormente na
minha visão romântica do amor. Doravante nem que me apareceis pintada de
lágrimas a suplicar por mim fará mudar a opinião com que fiquei de vós.
Os
momentos que outrora vivemos são hoje um poço de cujo fundo não se vê nem uma
réstia de luz, tal a escuridão com cuja negrura se vestiu o meu luto por vós.
Passado o nojo, sou hoje um homem novo. Novo e livre.
Peço-vos
que me não contateis mais, nem em sonhos, pródigos em aparições, porquanto não
vos falarei nunca mais até ao dia em que der o meu último suspiro.
Tenho
esperança de que esta pequena e clara missiva seja o suficiente para que
entendeis o quão longe já estais do meu coração e o quão renovado ele está das
vossas sevícias.
Sem
mais,
Quim Zé.
Assim
parti para outra, que é como quem diz.
Fosse
pelo que me acontecera (o abandono da Aninha e ela estar noutra), fosse por um
motivo qualquer que se escondera em mim durante largos anos, era agora um rapaz
não só boémio e dado a loucuras orgíacas, mas também a severos arrebatamentos
contra aquilo a que chamei a “falsa maneira de ser”.
A
falsa maneira de ser era comum a muitas espécies. Era a maneira de ser dos
betinhos, afetados, prepotentes, ridículos, bananas; era a maneira de ser dos
remediados subsumida numa atitude despeitosa para com os ricos, uma forma
camuflatória de ultrapassar a inveja; era a atitude dos pobres que se faziam de
pobres coitados porque a sorte não lhes bafejou uma nota de quinhentos; era a
dos velhos atores de tv que constantemente reclamavam na televisão mais
reconhecimento e subsidiozinhos do Estado; era a maneira dos velhos que julgam
que a idade lhes dá autoridade; mas era também a dos novos que julgam que são
donos do mundo só porque novos; era a
maneira dos hippies que reclamavam paz e amor e guerreavam com os punks por
serem mais cool (e que de hippies apenas tinham as vestimentas e as rastas
porcas); eram os punks que se armavam em anarquistas sem contudo nunca haverem
lido um livro que fosse de um anarquista – a única anarquia que praticavam era
a estupidez; era a maneira ainda dos hipsters com cujos bigodinhos faziam a
figura mais ridícula do nosso século, e bem assim a sua maneira afetada de
intelectuais de sarjeta; era ainda todos os derivados dos hipsters, que mais
não eram que uma outra forma de se ser o mesmo; eram ainda os dandy (derivado
hipsters), com cujas barbas faziam sucesso ante as mulheres mas cujo cérebro
era do tamanho dos seus pénis (isto fora-me dito pela Maria Joana Gomes e
Menezes de Cascais, que era uma putéfia patricinha que dormia com todos os que
pretendiam dormir com ela, mesmo aqueles que apenas tomavam banho aos
fins-de-semana – e não, eu não dormi com ela, graças salve-se lá a quem); eram
ainda os metaleiros cuja maneira de ser tiraria do sério um qualquer Vítor
Gaspar, qual seja, a pretensa superioridade intelectual repescada de um Anton
LaVey; era ainda, passando a outro segmento da sociedade, a dos professores
que, pós-modernamente, citavam mais autores por minuto do que segundos tinha o
minuto, só para dar uns ares de conhecimento, que era mais bibliográfico do que
de leitura; era ainda a maneira dos trabalhadores de instituições públicas e
outras cuja existência e alegria dependia do reconhecimento dos senhores
doutores – no mais viviam sem significado; era a maneira das putas bimbas que
se achavam mais que os demais porque no fundo se achavam menos; era a maneira
dos espetadores de cinema indie (nesta categoria entram muitas das mencionadas
acima, que isto de se ser falsa maneira de ser tem muito em comum) cuja atitude
era a de que só
vemos-cinema-indie-europeu-asiático-inteletual-porque-somos-diferentes-e-inteligentes-mais-do-que-qualquer-um-de-vós;
ou ainda os da música indie cuja atitude era
só-ouvimos-música-indie-porque-somos-muito-alternativos – estes confundem-se
muito com os do cinema, as mais das vezes subsumindo-se uns nos outros; era a
maneira de ser das feministas que tinham intolerância à lactose, de que nunca
recuperaram, e cuja atitude daí derivada era o
horror aos homens; era a dos políticos cuja maneira era falsa por
natureza – arquétipo ideal da falsa maneira de ser; enfim, ficar-me-ei por aqui
porque corro o risco de colocar todos no mesmo saco – o que não deixa de ser
verdade.
Em
face destes arrebatamentos coléricos, passe a redundância, quase me tornei
insuportável para mim mesmo. Não suportava nada. Não suportava ficar em casa a
ver televisão e as notícias geradas através das redes sociais, o jornalismo de
lixo que se tornou moda, muito menos nas redes sociais e o seu acefalismo, nem
na internet no geral e as suas criações discursivas; enfim, parava-se-me o
cérebro ante este espectáculo de pobreza que a internet gerou, contaminando
tudo à nossa volta. De modo que, refugiei-me no álcool e droga e nas saídas
constantes à noite atrás de noite.
Foi
por esta altura que conheci uma rapariga cujo nome ainda hoje me não lembro,
não obstante ter convivido com ela bastante tempo. Sabia apenas que lhe
chamavam a Bulé, mas nem eu nem a corja que me acompanhava sabíamos o nome
dela. Apareceu num dia em que o sol escaldava as pedras onde nos sentávamos
para fazer uns e nos perguntara se tínhamos alguma coisa que lhe arranjássemos.
Claro que nesta coisa das drogas a partilha é uma coisa que nos assiste, a
menos que se trate de cocaína, droga que por ser cara torna os drogados em
sovinas. Todos se apressaram a fornecer-lhe um pouco de ganza e convidámo-la a
sentar-se connosco. Vinha não se sabe de onde, chamava-se Bulé, mas não era o seu
primeiro nome, ia não sei bem para que lado, fumava não sabia bem porquê, era
linda sem saber como, desejada porque uma putéfia, a única certeza que tinha em
toda a sua existência. Passou a dormir na casa do João. Tanto quanto até hoje
sabemos, nunca se envolveu sexualmente com ele. O que, bem vistas as coisas,
não era assim uma putéfia como quiseram fazer passar. De cabelo curto que mais
parecia um homem, olhos cor do céu em tempos de primavera, nariz mediano, de
média altura mas abonada em termos de seios, com um cu que fazia perder a
cabeça qualquer homem, inclusive os maricas (veja-se bem o cu que ela tinha
que, por ser tão bom, até tornava maricas em homens!), com um sorriso tântrico,
tinha além destes atributos a capacidade de tornar alegre qualquer casa,
qualquer grupo, qualquer depressivo, qualquer drogado, qualquer bêbedo,
qualquer pessoa em crise existencial, qualquer pessoa a passar pela fase de fim
de namoro, qualquer ressacado com falta de heroína, de resto era capaz mesmo de
curar a ressaca só com a sua presença e o seu sorriso tântrico, qualquer emo,
enfim era a alegria em pessoa e por isso todos nós gostámos dela a acolhemo-la
tão bem. No dia em que se foi embora todos os machos do grupo pareciam uns
maricas, tal a quantidade de lágrimas que foram derramadas. Mais parecia um oceano.
Foi porventura a melhor coisa passou pelas nossas vidas.
Estabeleci
de imediato com ela uma química interessante que se viria a tornar numa boa
amizade, mesmo quando nos envolvíamos. Na fase em que tudo me irritava a
presença dela fazia a minha existência e tudo aquilo que vim a odiar mais
suportável. Era com efeito uma rapariga esplêndida, dotada de recursos intelectuais
superiores aos néscios que éramos. Tal como eu fora outrora, também ela era
muito dedicada à leitura, de modo que, quando ela passou a fazer parte da minha
vida a leitura voltou a fazer parte da minha também. Creio, não me recordo bem,
que fora no segundo dia depois de ela nos ter encontrado que a vi a ler um
livro do Charles Dickens, Tempos Difíceis,
em inglês, pois não havia tradução portuguesa (sabe-se lá porquê e quais as
razões de as editoras não o terem traduzido). Sentei-me ao lado dela, comecei a
fazer um e perguntei-lhe que livro estava a ler (apesar de já o ter visto). Ela
dissera-me. Perguntei-lhe se gostava de literatura portuguesa ou se só lia
literatura estrangeira, ao que me respondeu:
–
Zé Quim…
–
Não me chamo Zé Quim, mas Quim Zé.
–
Vai dar ao mesmo. Zé Quim, literatura portuguesa apenas leio os clássicos, tais
como Eça, Camilo, Herculano, Garret, e o Gonçalo M. Tavares.
–
Ai o Gonçalo M. Tavares é já um clássico?
–
Segundo consta nos críticos literários e na academia é já um clássico. Olha só
aquele livro dele, A Viagem à Índia,
já declarada uma epopeia equiparável aos Lusíadas
do Camões. Tudo isto dizem os críticos e a academia. Há, imagina tu, teses de
doutoramento a realizar-se sobre a obra dele. Há quem diga que ele vai receber
o Nobel.
–
Já fumaste muito hoje?
–
Dois.
–
Logo vi.
–
Porquê?
–
Só muito drogada podias estar a dizer tanto disparate.
– … (riu-se que nem doida, como aqueles
desenhos animados que se deitam ao chão perdidos de riso).
–
Olha, quanto aos primeiros, é verdade. No que respeita ao segundo estava na
tanga contigo.
–
Bem, assim está melhor. Acho que já nos podemos entender. Deduzo então que não
gostas dele?!
–
Odeio. É um tipo pedante, que escreve supremamente mal, que explora ideias
gastas e de filósofos duvidosos. Se aquilo é o que a literatura portuguesa tem
de melhor, então vou ali e não venho mais.
–
Mas então que achas de todo o hype em
torno dele? Creio que o termo é hype, certo?
–
Sim, é hype. Eu não gosto da palavra, mas emprega-se bem quando se trata dele.
Mas queres que te explique porquê este hype em torno dele?
–
Sim, claro.
–
Quanto tempo tens?
–
Como assim?
–
É que dá conversa para mangas.
–
Seja, as minhas são grandes.
–
Faz um enquanto explico.
–
Já a fazer.
–
Pois bem, aquilo que acho em relação a esse hype é que há como que uma
orfandade na literatura portuguesa depois da morte do José Saramago, que, como
sabes, foi só o melhor romancista que a literatura de língua portuguesa teve, e
em consequência a crítica e as editoras e a academia têm necessidade de suprir
essa morte. E para esse efeito encontraram este tipo, que não sabe escrever um
parágrafo com mais de duas linhas, e em conjunto, academia e crítica e editoras
estão a levá-lo e a elevá-lo a um patamar que ele nunca atingiu nem nunca virá
a atingir. Porquê ele e não outros, deves estar a perguntar-te. Pois explico.
Creio que parte muito do facto de ele ser professor universitário (imagine-se
que dá uma coisa chamada epistemologia, coisa que, estou segura, nem ele sabe o
que é), pois assim como que legitima as críticas que lhe fazem. Mas como bem
sabemos e o José Saramago nos mostrou, entre tantos outros, não é preciso
ser-se doutor para se ser grande escritor. De resto, as mais das vezes são
justamente os que não têm qualquer habilitação (às vezes, imagine-se,
habitação) que se tornam grandes escritores. Não sei se concordas comigo.
–
Nunca tinha pensado no assunto senão unicamente refletido sobre a pobreza de
estilo e de manejo da língua que ele incorpora.
–
Queres matar?
–
Não, mata tu.
E
assim passámos quase um dia a falarmos sobre literatura e a pobreza da
portuguesa contemporânea, e enfim dalguma estrangeira, e essas coisas todas. A
presença da Bulé foi um analgésico para mim. Durante a sua estada cá no burgo
tornei-me mais calmo, deixei os ódios, abandonei algumas orgias, mas não todas.
Pior foi quando ela partiu: emergiram novamente os ódios e a tendência para as
orgias.
Gostastes
da Bulé? Pode ser que volte a falar dela se em caminho surgir oportunidade.
edit
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