Capítulo IV

A partir desse dia começámos a frequentar a casa do João Maluco. Eu, o Marco Embuste e os irmãos Santos. Lá conhecemos o Hugo Salgado e o Vítor Espadas. Posso adiantar, já, que fora por intermédio do Vítor Espadas que conhecemos o Mariocas, o responsável por eu estar neste momento nas finanças sentado à espera que chegue a minha vez com vista a perguntar a estes senhores (e senhoras, bem as hajam) se sabem o que faz um caracol sentado ao sol. O Hugo era um rapaz problemático, com tendências pró-suicidas. O Vítor, um rapaz saído de uma família disfuncional cuja figura maior era o seu irmão de sete anos. Quer dizer, o rapaz era o único com alguma cabeça. O resto era marado dos cornos. A mãe era puta, o pai paneleiro, e a irmã estava a caminho de ser uma putéfia, igualmente. Coitado, o rapaz com este ambiente teve de virar drogado. O Hugo era o oposto, com raízes nos Salgados, era filho de pais ricos, nada disfuncional mesmo, dando-se todos muito bem, inclusive quando se tratava de roubar. Como o dinheiro sobejava, ele fazia questão, e dizia mesmo, de o foder, palavra dele, na droga, não fossem ele e ela acabar (ele o dinheiro, ela a droga). Já agora que estou numa de romancista piroso, falarei também da família dos Santos. Os Santos eram uma família abastada, com dinheiros que saíam do cu das calças como do mesmo sai todos dias a trampa (perdoai-me os tabuísmos, mas é que eles fazem parte da língua e, por conseguinte, não vejo porque não usá-los). Mas o que lhes sobrou em dinheiro, faltou-lhes em dicção. O Ricardo não conseguia pronunciar os erres. O Duarte era gago. Aquele, quando se lhe perguntava como se chamava, respondia: “Dicado”. Este respondia: “Cha … cha … cha .. mo … mo … -me Du … du … du … ar … ar … te. Coisa estranha, talvez, nunca pesquisei, é que ambos não padeciam destes problemas quando fumavam droga e aí encontravam ânimo para fumar todos os dias. Bem, já agora arrumo igualmente o Mariocas. Este não tinha pais nem avós, nem tios, nem irmãos, nem ninguém que lhe conhecêssemos. Tanto quando nos fora dado saber, fora educado (bastante bem, diga-se de passagem, não obstante a sua propensão para as drogas) numa instituição. Ora, era um miúdo institucional, não é assim que se diz agora? Ou será institucionalizado? Que se lixe, não importa. Aos dezoito resolvera sair da instituição que o educara e mantivera até então e começar a sua própria vida. Trabalhava nisso há bastante tempo. Economizara na droga durante dois anos, consumindo muito pouco e vendendo muito mais, de modo que, hoje tem uma casa cuja renda consegue pagar porque trabalha, e cuja vida só é assombrada pelo vício. No mais, é um rapaz normal. Ah, e é um rapaz alto, magro, com olhos azuis e cabelo loiro, por vezes ruivo quando o pinta, ou nada disto é verdade. Enfim, é um rapaz anatomicamente igual aos demais. Deixai-me explicar a tendência pró-suicida do Hugo. O tipo tinha umas ideias muito maradas. Achava que o suicídio era o ato maior da vida. Que quem se deixasse morrer e não se matasse não era digno de ter vivido. Assim como assim, veio a suicidar-se numa tarde de inverno de sol quente quando estava sob efeito de ácidos e se amandou do sexto piso do prédio do vizinho dos pais da Teresinha. Coitado, ainda hoje nos lembramos dele com frequência. Era um tipo muito especial, o Hugo. A Teresinha era uma moça cujos cabelos faziam mossa nos homens, mas não é personagem deste relato, e por isso ficará sossegadinha em sua casa. Se aparecer novamente é por desleixo meu. É que mais tarde irei ter alguma coisa com ela. Passageira. Adiante.
Tudo mudara desde que a Aninha me deixara. Passei a dar-me com os marmanjos de que vos tenho falado, a fumar droga, a beber em demasia, deixei de ir à biblioteca requisitar livros, embora leia com a mesma frequência, sobretudo quando passo noites acordado a fumar, pego livros emprestados deste ou daquele, mais das vezes da casa dos Salgados, às vezes não os devolvo, a frequentar bares e discotecas dúbias e a dar-me com pessoas mais dúbias ainda. Enfim, não creio que fora unicamente pela Aninha me deixar, honestamente. Acho que resultou de alguma outra coisa que de dentro de mim queria explanar-se, mas que eu ainda não entendi. Deixei de ver a Aninha e ela passou a não entrar no meu cérebro como o fazia antes. De início ainda me lembrava dela, mas depois gradativamente foi desaparecendo como desaparece um carro na estrada lá longe. Agora dividia o meu tempo entre a casa dos Salgados, às vezes na do Vítor, na dos irmãos Santos, e mais tempo na do João Maluco. Perdoai-me, pois esqueci-me de referir donde viera o João Maluco. Bem, o João era Maluco, e basta. Adiante. Na casa dele por vezes ficávamos noites inteiras a jogar playstation e a fumar droga. Por fim, comecei a deixar de ir às aulas. Porém sem os meus pais saberem. Até ao dia em que vieram a saber. Mas cada coisa a seu tempo.
Um dia, desses de sol intenso cujo calor abrasa qualquer pêlo do cu, estava eu indo ter com o Salgado, o Hugo, quando começou a chover com uma intensidade tão grande que eu me senti quase como que afogado de tanta água que caía do santo céu, mas como sabia nadar e bem, lá consegui dar umas braçadas e aguentar-me à tona, como quem se aguenta com umas boias, e acabei por chegar à casa do Salgado. Quando entrei, virou-se este para mim:
– Que se passou, que ainda agora estava sol e agora está a chover? – e respondi eu:
– Que se passou, que ainda agora estava a chover e agora está sol? – e desatámos a rir sem alma como o diabo. As nossas conversas, sobretudo entre mim e o Salgado, eram providas de uma eloquência filosófica como só o Gonçalo M. Tavares consegue produzir nos seus textos. Ou seja, era aquela filosofia da tasca que consome em demasia os bêbedos e alimenta de alegrias leitores néscios. Nesse dia em que choveu a potes e fez sol quente como do inferno, eu e o Salgado fumámos uns, sei lá, trezentos e quarenta mil charros, mais extra. Enfim, quando os outros chegaram já nós não nos conseguíamos levantar. Foi uma porrada de droga que eu sei lá. Uma coisa bestial ao nível dos melhores e maiores do mundo da droga. Só visto mesmo. Só estando lá mesmo. Quando os outros começaram a enrolar, já nós dormíamos como o velhinho que mal cai na cadeira está logo feito bebé. E quando acordámos para sairmos para a casa do João Maluco, que ia dar uma festa de arromba, já não nos apetecia levantar, sair tampouco. Mas o Espadas, que nestas coisas é um tipo bestial, incentivou-nos como só ele sabe fazer, e enfim lá fomos para a casa do Maluco. Nem vos conto. Essa noite foi de doidos. Quereis mesmo que vos conte? Tendes a certeza? Pois bem, então cá vai.
Era uma noite muito muito escura, como o breu, daquelas que só escritores de qualidade conseguem descrever em palavras. Quase não se via nada, parecia nevoeiro. Nem as luzes da cidade eram suficientes. A meio do caminho quase nos despistámos. Que coisa. Haviam de ver. Mesmo só visto. Mas enfim, a moca passou e a noite tornou-se tão clara que a lua parecia ser de lua cheia. Estava mesmo de lua cheia. Ou então em formato queijo suíço ou o caralho. Sei lá. Não importa. Quando chegámos a casa do Maluco só se viam mulheres por todo o lado, homens também, mas o nosso cérebro só via as mulheres. Estava lá a Teresinha, mas não foi desta. Para a frente contarei, se achar necessário. A Aninha é que nunca estava. Nunca a vi nestas festas nem noutras nem nunca mais até um dia… mas isso é outra história. Vou mencioná-las, que saibais, eram então: a Maria João, a Rita Fonseca e putinha do Paulo, Inês Gomes, Francisca Fonseca, irmã da Rita, Paula Lopes, Paula Mariana e Gomes de Sá, a filhinha do velhote da tasca Gomes de Sá, Alexandra Fortes, Teodora Oliveira e Pereira (com esta era de rir em fartote com o nome dela), Sónia Bravo, Lúcia Cardoso, Joana Hofstadter, aparentada do génio, Carminho Bettencourt (a mais requisitada quando se estava bêbado), Luzia Camacho, a espanhola, e estou em crer que não falta mais nenhuma. Se faltar, é porque não teve interesse.
O João recebeu-nos com uma alegria que não sei se era sincera ou resultado do que já fumara.
– Entrem, entrem, que esta vai ser de arromba.
– Eu cá já não posso mais … – Dissera-lhe o Hugo.
– Qual quê, a noite ainda está no começo.
– Mas nós já começámos há muito. – Dissera-lhe eu.
– Quando chegámos a casa do Hugo para os ir buscar a ele e ao Quim Zé, já eles estavam aterrados de tanto fumar. João, havias de os ver. Pareciam dois velhos.
– Eu tenho uma coisa que vos vai espevitar.
– Ai é? – Perguntou o Espadas.
– Sim, mais para a frente. Por agora sirvam-se das bebidas, da erva e divirtam-se. – disse o João. E assim fizemos. Oh, e como fizemos!
No que me tocou, comecei por mamar logo um uísque, já que quando misturado com erva era cá uma moca que eu sei lá. Tanto quanto tinha lido há uns dias, um estudo qualquer de uma revista qualquer, sei lá o que caralho era, afirmava-se que a mistura da erva com o uísque era o equivalente à moca da cocaína. Então não estive pelas medidas e enfrasquei forte e feio. O Espadas ainda me veio dizer para ir com calma, porquanto a noite estava a começar. Mas fosse porque me não queria lembrar da Aninha (agora raramente me lembrava dela, emergindo ela unicamente quando estava bebido), ou fosse por razões que eu desconhecia e me impeliam a beber e chafurdar forte e feito no álcool e droga, eu mergulhava naquela orgia como se o amanhã não viesse. O Hugo acompanhava-me deveras nesta desgraçada orgia. Divertíamo-nos à brava. Os Santos começavam já a apurar a fala, quase não gaguejando um mas pronunciado os erres o outro. As coisas compunham-se mal avançava a noite. As mulheres apareciam-me como princesas envoltas em vestidos roxeados e esmeraldeados, belas como a Aninha, eram Aninhas multiplicadas vezes sem conta … e eu abraçava-as histérico, dançava com elas ao som da música, forçava um beijo aqui e acolá, e a maior parte correspondia, não para espanto meu porque não estava em condições de pensar, mas se o tivesse sentir-me-ia espantado, até ao dia em que compreenderia que quando se está nestas condições de lucidez faltosa todas as coisas são possíveis. O João, notando em mim a faísca que ia saltando em ordem a pegar fogo, aproximou-se de mim e ordenou:
– Quim Zé, anda comigo ali ao quarto que tenho algo que te fará bem. – E eu lá fui com ele. Quando entrámos no quarto, ele tinha em cima da secretária uma farinha branca, a qual, estando eu em condições deploráveis, pensei ser magnésio. E virei-me para ele e disse-lhe então vais dar-me magnésio? E ele:
– Não, Zé. – Normalmente tratavam-me por Quim Zé, mas a dado momento, por preguiça, tratavam-me ou por Quim ou por Zé. – É cocaína. Queres? Acho que te fará bem para cortar essa bebedeira. – Bem, eu não estava em condições de pensar, como deveis calcular, e se ele o dizia … Porém, recordo-me de ter visto isso suceder em Californication, quando o Hank Moody, esse personagem já cultuado por meio mundo, estava para dar uma palestra ou coisa que o valha mas estava com uma bebedeira daquelas que só ele sabia e então os amigos lograram como solução ir buscar cocaína a fim de ele consumir e aliviar-lhe a bebedeira. Sacou, o João, do cartão de multibanco, começou a separar a montanha (passe o exagero, embora já fosse uma boa dose) e fez ali quatro linhas muito célere, duas para ele, duas para mim. Enrolou uma nota de vinte euros fazendo uma espécie de canudo, snifou e explicou como deveria fazer. Não foi difícil, já que na televisão via-se com frequência. Imitei-o. Quando voltámos à sala, bebi um pouco de água. Em meia hora estava, de facto, bastante melhor. Mais desperto, mas não menos bêbedo. Sentia-me melhor, mais atento.
Antes de o João me levar ao quarto estava a mirar a Paula Mariana e Gomes de Sá, a filha do tasqueiro, patricinha doce e bela, mas sem se igualar à Aninha, embora de corpo não ficando longe. O Espadas já andava em derredor da Carminho Bettencourt. Os irmãos Santos atiravam-se um à Alexandra e o outro à Lúcia Cardoso. O Hugo, por seu turno, estava tão, mas tão fora de si que não ligava a nada nem a ninguém. Quando entrava naquele estado quase-transe a vida parecia-lhe parar. Abeirei-me da Paula a fim de comunicar com ela, mas foi ela a tomar a iniciativa. Quereis adivinhar o que ela me perguntou? Claro que sabeis, não é difícil. Quando se namora a mulher mais bonita da escola não há mulher que se nos escape das mãos. Então, pergunta ela:
– Não eras tu que namoravas a Cristina Ana? – Vedes, foi fácil. Já começava a habituar-me à pergunta e resolvera colher dividendos desta situação. Assim como assim, fizera-me de rapaz abandonado, o pobre coitado cuja beldade o vilipendiara publicamente votando-o ao esquecimento, e respondi:
– Sim, sou. Tem-la visto? – A pergunta tinha propósito, fá-la-ia pensar que eu ainda pensava na Aninha, o que faria, por sua vez, ela querer-me confortar na eloquência dos seus ombros amigos.
– Sim. Acho que ela anda com o Miguel. – Caramba, se eu estava meio bêbedo depressa fiquei sóbrio. Nem queria acreditar no que estava a ouvir. Desandei dali para fora para apanhar ar. Ela veio atrás de mim até ao jardim lá em baixo e dissera-me:
– Não sei se é verdade, foi o que me contaram. – Mas eu já não queria saber. Que fodesse o Miguel, que fodesse com quem quisesse. Se ela podia, eu também. E assim, mudando de conversa astutamente, indaguei a Paula sobre como viera ali e como conhecia o João. Tudo para fazer conversa e não pensar mais na Aninha. Mas sobretudo porque agora queria ir com ela para o quarto do João e deitar-me na cama com ela, esquecer a Aninha, beijar a Paula, descobrir o seu corpo e não pensar em mais nada. Quereis saber se assim foi? Bem, deixo isso para mais tarde, se até lá achar que é necessário voltar à Paula Mariana e Gomes de Sá.
No dia seguinte fui acordar na casa do Vítor Espadas. Bem, mas que coisa mais marada acordar assim numa casa cuja única pessoa saudável da carola era o puto de sete anos. O Vítor também o era, mas … Assim, quando dou por mim estou numa conversa assim prò marada com o puto.
– Como te chamas?
– Quim. Zé, Quim Zé.
– Eu chamo-me Mané. Manuel. Mas chamam-me Mané. És amigo do meu irmão?
– Sou sim.
– O meu irmão tem muitos amigos. Tu nunca cá vieste a casa.
– Não.
– Não perguntei. Afirmei.
– Sim, eu sei, mas resolvi responder.
– Como podes resolver responder a uma não-pergunta, se não te perguntei nada?
– A fim de esclarecer melhor.
– Mas eu não pretendi ser esclarecido, uma vez que já o estava, daí que afirmei e não perguntei.
– Pois… – Não me bastava a ressaca, ainda tinha de levar com a filosofia do puto.
– Pois o quê?
– Nada. Deixa para lá.
– Como posso deixar para lá o nada?
– Não tens que fazer?
– Não. Os meus pais ainda não chegaram.
– Que horas são?
– Dez da manhã.
– E onde estão os teus pais?
– A minha mãe saiu ontem à noite, foi trabalhar. Trabalha de noite. Vende-se. E o meu pai deve ter ido procurar homens.
– E a tua irmã?
– Ah, deve ter ido a alguma festa. Passa a vida em festas com as amigas.
– Não tens sono?
– Já dormi toda a noite.
– Sozinho?
– Sim, não tenho medo. Estou habituado.
– Volta a dormir.
– Já te disse que não tenho sono.
– Então vai brincar.
– Não tenho com quem. Queres brincar comigo?
– Não, quero dormir e agradecia que me deixasses dormir, sim?
– Oh, podias vir. Podíamos jogar xadrez. Sabes xadrez?
– Não.
– Eu ensino-te. – o raio do miúdo não havia forma de me deixar em paz.
– Não, hoje não. Não estou com cabeça.
– Andaste nas drogas como o meu irmão?
– Não.
– Não me enganas.
– Nem quero.
– Mesmo que quisesses não o conseguias.
– Está bem.
– …
– …
– Queres tomar alguma coisa para a ressaca?
– Que tens aí?
– Sumo de laranja, o meu irmão diz que faz bem.
– Pode ser.
– Já te trago. – E adormeci novamente até que o puto veio com o sumo e me acordou, novamente.
– Está bom?
– Sim, obrigado. Agora deixa-me dormir, sim?
– Oh…
– …

E assim adormeci mais umas horas até os pais do miúdo e do Vítor haverem chegado. 
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